O passado é um intrometido – está sempre presente. O verso do poeta Mario Quintana deveria ser encarado como um lembrete permanente pelo governo Carlos Moisés (PSL) quando se fala em respiradores de UTI. Por mais que o governo se esforce para virar a página, a lembrança das atrapalhadas transações realizadas na Secretaria de Saúde no início da pandemia do coronavírus sempre voltam para atormentar.
O emblemático caso dos respiradores fantasmas – aqueles 200 equipamentos comprados por R$ 33 milhões pagos antecipadamente e nunca entregues – quase lhe custou o mandato em um processo de impeachment, todos sabemos. Agora, a ele se junta um caso menor, mas suficiente para trazer o tema à tona. O Tribunal de Contas do Estado (TCE) autorizou no início da semana a abertura de uma tomada de contas especial para investigar uma compra mais modesta, mas com todos os ingredientes que explicitam que em março de 2020 o rito dos procedimentos na Secretaria de Saúde era a falta de rito.
Esse caso tem como protagonistas os mesmos nomes do caso Veigamed: o ex-secretário Hélton Zeferino e a ex-superintendente de gestão administrativa Márcia Regina Pauli, além do ex-diretor de licitação e contratos Carlos Charlie Maia. Há uma diferença importante. A empresa Edera, de Araranguá, entregou os 20 respiradores, ao contrário da Veigamed. No entanto, o corpo técnico do TCE e o procurador Diogo Ringenberg, do Ministério Público de Contas (MPC) apontam que nesse caso também “houve negligência dos responsáveis em efetuar o pagamento antecipado sem celebração do contrato indicando as devidas garantias”. O raio poderia ter caído novamente no mesmo lugar.
Pelo relatório técnico que embasou a abertura da tomada de contas especial (uma espécie de inquérito no âmbito das cortes de contas), existem diversos erros formais na contratação da Edera, inclusive a ausência de estimativa de preços para dar parâmetro à compra e justificativa para escolha da empresa. O mais importante a ser averiguado, no entanto, é a discrepância entre os equipamentos comprado e os entregues (os 20 respiradores seriam de transporte, não de UTI) e um sobrepreço calculado em R$ 1,68 milhões. Cada aparelho custou R$ 65 mil, enquanto o preço de mercado – levando em conta a pandemia – não chegava a R$ 26 mil.
O caso ganha destaque com a análise administrativa no TCE, mas não é novidade para a investigação realizada no âmbito do Ministério Público de Santa Catarina (MP-SC). O ex-secretário Douglas Borba, da Casa Civil, relatou ao Gaeco que havia outros sete contratos realizados com pagamento antecipado na Secretaria de Saúde em março de 2020 além do celebrado com a Veigamed. Um deles era este da empresa de Araranguá. Como disse antes, a falta de rito era o rito.
Os sete contratos foram identificados pela Secretaria de Integração e Governança (SIG) após o caso Veigamed ganhar os holofotes. Curiosamente, em 1º de abril de 2020, Hélton Zeferino encaminhou ofício à Casa Civil pedindo que o TCE fosse consultado sobre pagamentos antecipados – quando os sete contratos já haviam sido celebrados.
O passado é um intrometido, ensinou Quintana. Enquanto o próprio governo e o próprio Moisés não tomarem para si, como questão de honra, passar a limpo a sucessão de falhas administrativas na Saúde que resultaram ou deram combustível a uma crise política que quase derrubou o governador, enquanto isso não acontecer o passado seguirá sendo âncora do futuro.
Sobre a foto em destaque:
Os respiradores de UTI – e o desespero dos governos para comprá-los – foram os protagonistas dos primeiros meses da pandemia do coronavírus. Em Santa Catarina, uma negociação fracassada gerou um prejuízo de R$ 33 milhões e quase derrubou o governo Moisés. Na imagem, um respirador corretamente comprado e entregue estava prestes a embarcar para o Oeste do Estado. Foto: Maurício Vieira, Secom.