Gosto muito e repito sempre uma frase que me foi dita pelo atual presidente do Tribunal de Justiça, Ricardo Roesler, quando comandou o Tribunal Regional Eleitoral (TRE-SC) em 2018.

– É preciso muita inteligência para fraudar uma eleição eletrônica. Não é preciso muita inteligência para fraudar uma eleição em papel.

Lembrei bastante da frase do magistrado no último domingo, quando apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) foram às ruas em manifestações pela volta da impressão do voto individual – aposentada em 1998 após uma longa história de fraudes, trapaças e desconfianças no Império e na República. Na maior parte desse período, quase ninguém sentiu saudade de votar em cédulas de papel, exceção feita a alguns paranoicos, uns teóricos da conspiração e quem queria continuar a escrever xingamentos aos políticos em vez de votar. O papel aceitava tudo; a urna eletrônica, não.

Com seus resultados quase imediatos substituindo as demoradas apurações, o voto eletrônico logo caiu na graça da população. Brasil confiou na urna eletrônica e nela elegeu Fernando Henrique Cardoso (Psdb), Lula (Pt), Dilma Rousseff (Pt), Jair Bolsonaro (ex-Psl), dezenas de governadores e senadores, milhares de prefeitos, deputados e vereadores. Tudo isso foi possível não apenas porque o Brasil apostou em sistema eleitoral inovador, mas também porque aportou volumosos recursos públicos para colocá-lo em pé e aperfeiçoá-lo pleito a pleito. Lembre quanto tempo levou e quanto custou para a implementação da biometria – um sistema, talvez até exagerado, para garantir que ninguém vote no lugar de outra pessoa.

Era como se o Brasil que ficou 21 anos proibido de votar para presidente e tempo semelhante fingindo que poderia mudar os rumos do país naquelas eleições consentidas entre 1965 e 1982, era como se esse Brasil bradasse ao mundo o orgulho de ter um sistema eleitoral inigualável no mundo. E confiou nesse sistema.

Há uma coisa em comum entre as eleições e as vacinas – e não é a antipatia que curiosamente tem despertado nos mesmos setores da sociedade. Essa coisa em comum é que sem a confiança da sociedade, elas não alcançam o efeito desejado. Se um contingente muito grande de pessoas não confiar nas vacinas, a imunização comunitária desejada não é alcançada. Um povo que não acredita na forma de escolher representantes, não usa esse direito ou o faz sem a devida consciência.

Durante anos tratamos os teóricos da conspiração da urna eletrônica com o mesmo desdém destinado aos movimentos antivacina. Ambos cresceram muito nos últimos anos, em movimentos nada espontâneos. Tirar essas teses e desconfianças das bolhas paranoicas é a tarefa cotidiana de quem trabalha para minar a confiança nas instituições. Um movimento que não se restringe ao Brasil. Lembrei de outra frase de Roesler naquela entrevista de 2018: “A Justiça Eleitoral é a maior vítima de fake news”.

Ao ver a quantidade de pessoas nas ruas no último domingo, é inegável que alguma resposta precisa ser dada. Hoje as críticas à urna eletrônica não saem de obscuras comunidades de Orkut em que pessoas escondiam atrás de teses suas frustrações pessoais. Hoje essas críticas vêm do presidente da República, o que faz com que reverberem com muita força em seus militantes. Mesmo que não sejam a maioria, é impossível manter um sistema de votação que não gera confiança em um contingente tão grande da população.

Não digo que a solução seja atender aos anseios primitivos e adotar essa proposta de dupla votação e dupla apuração, fadados a criar mais confusão do que entendimento. Mas alguma resposta que reafirme o orgulho e a confiança que o Brasil ostentava até poucos anos atrás. Talvez um empoderamento maior dos Tribunais Regionais Eleitorais e menor centralização das divulgações de resultado no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Infelizmente, a recuperação da confiança precisa ir além de desmentir fake news e apontar as razões autoritárias por trás da campanha difamatória contra a urna eletrônica. É preciso reconquistar.


Sobre a foto em destaque:

Alvo de campanha de difamação, a urna eletrônica precisa reconquistar a confiança de parte do eleitorado suscetível às declarações do presidente Jair Bolsonaro. Foto: Antonio Augusto, TSE.

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