Já escrevi que o fundo eleitoral é uma solução simples e completamente equivocada para um problema complexo. Também já disse que as frequentes manobras para aumentar o volume de recursos do polêmico e impopular fundão caracterizam o forte impulso suicida das elites políticas. Agora, esse misto de esperteza e estupidez que emerge do Congresso em toda votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) em ano anterior às eleições escancara novamente essa ferida mal curada da política brasileira: o financiamento público como substituto das doações empresariais proibidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na esteira da revelação pela Operação Lava Jato das espúrias relações entre doadores e candidatos.
O que vivemos entre quinta e sexta-feira, com a reação da sociedade à aprovação do texto da LDO com um inacreditável aumento no fundo eleitoral de R$ 2 bilhões para R$ 5,7 bilhões, é um filme manjado e que se perpetua enquanto o Brasil não discute – DE VERDADE – um modelo de financiamento de campanhas eleitorais que não signifique a cada disputa um prego no caixão da própria política. A manobra foi tentada em 2019, com um aumento mais “módico”, R$ 3,7 bilhões. Foi rejeitada a tempo, graças à pressão da sociedade sobre a classe política. De lá para cá, vivemos uma pandemia, o aumento do desemprego, a fragilização da sociedade diante de brigas políticas que esgarçam até os limites as instituições democráticas. E os políticos dobraram a aposta.
O que vimos na sequência foi a costumeira e patética tentativa de deputados federais e senadores, inclusive alguns de Santa Catarina, de desfritar o ovo. Louve-se os votos contrários de Carmen Zanotto (Cidadania), Gilson Marques (Novo), Pedro Uczai (Pt) e Rodrigo Coelho (Psb), na Câmara, e de Dário Berger (Mdb), no Senado. Votos de coragem, já que a manobra feita pelas lideranças partidárias impediu a votação em destaque apenas do aumento do fundo eleitoral, fazendo que com esses parlamentares, assim como outros 141, tivessem que votar contra toda a LDO. Uma coisa que é preciso explicar: não se vota contra a LDO, assim como não se vota contra o Orçamento. Discute-se, questiona-se, busca-se alternativas de remanejamento, mas não se vota contra o texto final, porque não ter LDO ou orçamento trava a República. Por isso, importante ressaltar a importância do gesto de repúdio simbolizado nesses votos não. E isso explica a reação de diversos parlamentares alegando que o sim dado à LDO não significava endosso ao aumento do fundão.
Talvez o leitor que chegou até este parágrafo ache que meu título foi exagerado: ou a política acaba com o fundo eleitoral ou o fundo eleitoral acaba com a política. Pensamos a curto prazo. Além de aumentar o desgaste da já desgastada classe política e do já desgastado Congresso, o aumento do fundão provavelmente será vetado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que terá a chance de interromper a maré das más notícias geradas na CPI da Covid com um ato extremamente popular. O presidente que já vem alvejando o STF e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ao questionar a lisura da votação em urnas eletrônicas, ganha munição para também se agigantar por sobre o Congresso, que deve enterrar nas próximas semanas a discussão sobre o voto paralelamente impresso para auditoria posterior dos resultados – chamarei assim a PEC do Voto Impresso, que é uma falsa prioridade, mas não é um falso problema.
A longo prazo, no entanto, os efeitos do fundão são mais nocivos que os arroubos de um presidente que bravateia que o Brasil não terá eleições ano que vem se não for como ele quer que sejam. O fundão tem efeitos perversos sobre a própria dinâmica dos partidos políticos – como qualquer vício. Por ter como base para distribuição dos recursos a eleição para deputado federal disputada quatro anos antes, o modelo sempre olha para o retrovisor e ajuda a perpetuar a correlação de forças entre as legendas. Por nunca ser suficiente para todas as candidaturas, por mais bilionário que seja, concentra poder demais nas mãos do caciques partidários e em seus escolhidos. Por essa mesma escassez, faz com que a maioria dos partidos pense muito antes de lançar as caríssimas candidaturas presidenciais ou de governadores, para não dividir o bolo com as candidaturas a deputado federal – responsáveis por garantir a manutenção das cotas no fundão paras duas eleições seguintes.
Mais alguns anos de fundão e cristalizaremos no país um modelo partidário em que alguns poucos partidos disputam a presidência, por terem um projeto de poder, enquanto a maioria deles disputa cadeiras na Câmara dos Deputados, por terem um projeto de ocupação do poder. Não há reforma política que conserte um sistema tão viciado. Isso se a sociedade enojada por cada tentativa de aumento do fundão não apoiar uma saída autoritária para a qual não faltam bravateiros a comandar. Aí, sim, é o fim da política, o fim da democracia. O preço é muito alto. Muito mais alto que os três bilhões esses mais.
Sobre a foto em destaque:
Sessão do Congresso Nacional, quinta-feira à noite, em que foi aprovada a LDO com emenda aumentando o fundão eleitoral.