A primeira experiência de mandato coletivo em Santa Catarina implodiu na última sexta-feira, dia 11. Eleitas para uma vaga na Câmara de Florianópolis em 2020 sob a alcunha “Coletiva Bem Viver”, Cíntia Mendonça, Mayne Goes, Lívia Guilardi, Marina Caixeta e Joziléia Kaingang romperam a relação iniciada naquela eleição com a proposta de reunir diferentes perfis em uma única chapa – a primeira delas seria a legalmente titular e as demais ganhariam o título informal de covereadoras, mas com a regra interna de que não haveria hierarquia e que as decisões seriam sempre compartilhadas.

A experiência durou quase dois anos e foi encerrada ruidosamente. No dia 9 de novembro, Cíntia Mendonça, utilizando os poderes de vereadora titular do mandato, demitiu cinco assessores do gabinete. Foi o estopim para que Mayne, Lívia, Marina e Joziléia anunciassem dois dias depois, através das redes sociais do mandato, que estavam deixando os cargos.

– Diante do total descumprimento do acordo coletivo da candidatura e da gravidade da situação, nós covereadoras Mayne Goes, Lívia Guilardi, Marina Caixeta e Joziléia Kaingang viemos a público comunicar nosso desligamento da mandata Coletiva Bem Viver a partir desta data. E informar que, a partir de hoje, a covereadora Cintia Mendonça passa a não ter nenhuma legitimidade de manter a utilização do termo “Coletiva Bem Viver”, uma vez que não respeitou as decisões coletivas, atuando como um mandato individual sem a participação das demais covereadoras eleitas – dizia o grupo dissidente na nota. (Leia a íntegra)

A resposta de Cíntia Mendonça, agora vereadora solo, também veio em nota nas redes sociais. Ela dizia que “a composição da assessoria atual do gabinete havia chegado ao seu esgotamento”, revelava problemas de relacionamento, “boicote” e “rivalidade” dentro do mandato, além de prometer manter a estrutura coletiva dentro do mandato com outras mulheres “fiéis aos princípios do Bem Viver”. 

– Apesar de toda essa situação, reiteramos que fizemos o máximo esforço para manter a participação e lamentamos que as covereadoras não tenham aceitado essa reorganização e tenham decidido romper com o mandato. Repudiamos o método de fazer esse debate através da imprensa e redes sociais, distorcendo os acontecimentos sobre os quais temos fartas evidências – dizia Cíntia em sua nota. (Leia a íntegra)

Toda essa história começa 71 dias antes das eleições municipais de 2020. O Psol de Florianópolis liderava uma frente de partidos de esquerda na disputa pela prefeitura com a candidatura de Elson Pereira à prefeitura e havia construído uma chapa com reais condições de reeleger os vereadores Marquito e Afrânio Boppré e conquistar pelo menos uma cadeira extra, disputada com equilíbrio por diversas candidaturas. Foi Cíntia que procurou as futuras colegas de mandata, como elas preferiam se apresentar, com a ideia de unir forças em uma candidatura coletiva. 

Embora não houvesse previsão legal para esse tipo de candidatura, havia alguns registros bem sucedidos pelo país nas eleições municipais de 2016 e 2018 e parecia uma forma de dar competitividade a grupos heterogêneos. Como Cíntia tinha mais tempo de militância no Psol, seria a candidata formal. 

Nas urnas, a estratégia funcionou e a Coletiva Bem Viver surpreendeu o próprio Psol. Os vereadores Marquito e Afrânio, como previsto, foram reeleitos com tranquilidade. A terceira vaga, no entanto, foi disputada voto a voto entre quatro candidaturas. O mandato coletivo recebeu 1.660 votos, apenas 99 votos a mais do que a primeira suplente Tânia Ramos, 162 a mais do que Pedro Cabral e 184 a mais do que Leonel Camasão – que havia concorrido a governador pelo partido em 2018 e era considerado favorito para a terceira vaga. 

No primeiro ano de mandato, ainda em meio às restrições da pandemia do coronavírus, as coisas andaram bem. Cíntia era a porta-voz do mandato no plenário e na tribuna, mas as decisões eram compartilhadas e as covereadoras, de acordo com a temática, participavam de atividades menos restritas, como audiências públicas e reuniões internas. Com o tempo, no entanto, começaram a surgir as dificuldades na convivência do grupo. A demissão dos assessores este mês acabou sendo a gota d’água de um copo que começou a encher a partir de um racha na organização em 2021. 

Inicialmente, Cíntia Mendonça, Lívia Guilardi, Marina Caixeta e Mayne Goes faziam parte da Subverta, uma dos coletivos internos do Psol (similar às correntes que existem na organização interna do Pt). Apenas Joziléia Kaingang, liderança indígena, integrava outra frente política à época da reunião do grupo. Em outubro de 2021, Cíntia deixou a Subverta para ajudar a fundar o Movimento Bem Viver, nacional e desvinculado da organização interna do Psol. Foi expondo esse novo grupo que Cíntia concorreu a deputada estadual este ano novamente liderando uma proposta de mandato coletivo sob a alcunha “Cíntia Mandata Bem Viver”, que recebeu 7.137 votos e ficou a segunda suplência do Psol – Marquito foi eleito com 40,2 mil votos. 

Antes da eleição, a mandata já estava diferente. A criação do Movimento Bem Viver foi a justificativa de Cíntia para exigir uma reformulação da equipe, visando maior “equilíbrio diante da composição de forças políticas”, segundo nota publicada após a dissolução do mandato conjunto. O colegiado do mandato coletivo aumentou e um conselho político interno foi criado para equilibrar o peso das covereadoras com as pessoas ligadas ao Bem Viver nacional. Seria a partir desse conselho que as pautas referentes ao mandato deveriam ser expostas, discutidas e decididas. No entanto, segundo as covereadoras, até mesmo essa nova instância acabou esvaziada e evitada pela vereadora titular em suas decisões recentes. O exemplo enfático, e último, as demissões dos cinco assessores ligados ao gabinete original. 

Procurada pela reportagem, Cíntia Mendonça preferiu “aguardar novas manifestações para além da nota publicada”. As ex-covereadoras também preferiram não falar. Aliada do grupo e candidata mais votada do Psol para o cargo de deputado federal nas eleições deste ano em Santa Catarina, a líder indígena Kerexu Yxapi saiu em defesa delas. Nas redes sociais, compartilhou a nota oficial sobre a ruptura e publicou um texto próprio em que fez críticas à atuação da parlamentar titular. 

–  Percebi no ano passado, bem no período da Cop (Conferência Mundial do Clima realizada em 2021 na Escócia), quando Joziléia vai para acompanhar as agendas internacionais, sempre alguma coisa voltada à questão indígena era colocada sem a consulta. […] Sempre alertei porque passei pela mesma situação com a mesma pessoa. A forma de mudar de movimento também como se fosse algo descartável. Por isso sei exatamente a forma que usa para dar o golpe via redes, da exploração, manipulação e das apropriações – disse Kerexu, que é coodenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e está cotada para integrar o grupo de transição do governo do presidente eleito Lula (Pt).

Os colegas de bancada psolista na Câmara falaram sobre o episódio à reportagem. Afrânio Boppré foi sucinto:

– O assunto está sendo tratado no âmbito interno partidário. Como líder da bancada acompanho. O tema é novo, está em construção e estamos vivendo e aprendendo.

Eleito deputado estadual, mas vereador até o final do ano, Marquito enxerga com preocupação não apenas a debandada, mas como todo o processo foi conduzido. Ele salienta que os assessores demitidos eram “trabalhadores e trabalhadoras, que por vezes tinham como certo aquele emprego”. 

– Como colega vereador, como membro do Psol, é um grande prejuízo para todo mundo. Um coletivo precisa ser formado por um histórico de um convívio coletivo e dinâmica coletiva entre os integrantes. Não juntar pessoas isoladas e falar que ‘tem um coletivo’. É preciso ter uma cola que una essas pessoas. Lamento não ter acontecido. A pessoa que encabeça precisa ter uma habilidade muito grande de lidar – disse Marquito.

Instado a se manifestar sobre o racha, o Psol de Florianópolis adotou um tom de cautela e também limitou-se às redes redes sociais. Lamentou que o primeiro mandato coletivo de Santa Catarina tenha sido interrompido, mas disse que a legenda segue aberta ao que classifica como “novas experiências políticas”. Também indicou que o mandato de Cíntia não será contestado internamente e nem que citou algum procedimento interno de avaliação da conduta ética da parlamentar. A lógica é de que “esse tipo de iniciativa não possui previsão legal e depende de acordos políticos para existir”. Assim, apontou o partido, “Cíntia Moura Mendonça, pessoa escolhida para representar a Coletiva Bem Viver nas urnas em 2020, seguirá ocupando a vaga na Câmara de Florianópolis, como determina a legislação vigente”.

A falta de regulamentação que dê segurança aos chamados covereadores e aos próprios eleitores que optaram por um mandato coletivo é o grande calo desse tipo de experiência. A rigor, o titular do mandato tem o direito de exonerar qualquer integrante do gabinete e tomar as decisões que quiser. No final de 2021, o tema chegou ao plenário do Tribunal Superior Eleitoral (Tse). Os juízes da Corte autorizaram que os nomes dos coletivos fossem utilizados legalmente durante as eleições, mas fizeram questão de ressaltar que não existe legislação para o funcionamento posterior do mandato. Relator da resolução, o ministro Edson Fachin destacou que “a chamada candidatura coletiva representa apenas um formato da promoção da candidatura que permite à pessoa destacar seu engajamento social e coletivo”. O magistrado reforçou que o registro permanece de caráter individual, não existindo na legislação brasileira o conceito de candidatura coletiva.

Em Florianópolis, o fim da experiência inédita de mandato compartilhado entre cinco mulheres será marcado pelo Diário Oficial de Florianópolis, com as exonerações das covereadoras – o que ainda não havia sido realizado até esta quinta-feira, dia 17.


Sobre a foto em destaque:

Ainda nos bons tempos, as cinco integrantes posam em frente a Galeria Lilás da Câmara de Florianópolis, que reúne os retratos de todas as ex-vereadoras da Capital. Pela ordem, da esquerda para a direita, Marina Caixeta, Joziléia Daniza Kaingang, Lívia Guilardi, Cíntia Mendonça e Mayne Goes. Foto: Página da Coletiva Bem Viver no Facebook. 

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