Ao entrar no gabinete da vereadora Carla Ayres (Pt) na Câmara de Florianópolis é impossível não reparar na parede enfeitada com oito peças de neon vermelho. Foi a sugestão de uma amiga da parlamentar, arquiteta que assinou a decoração de alguns bares da noite alternativa da Capital, para dar um diferencial ao espaço sem divisórias onde trabalha a equipe do mandato ao estilo coworking. Mas não se engane por impressões. A conversa é muito séria.

Eleita pela primeira vez após três breves passagens como suplente na legislatura passada, Carla Ayres muitas vezes fala como a doutora em Sociologia Política pela UFSC, outras tantas como ativista LGBT. Mas fala principalmente como uma minoria quase absoluta dentro da Câmara da Capital: é oposição ao prefeito Gean Loureiro (Democratas) em meio a uma base governista que conta com 17 das 23 cadeiras em uma postura caninamente fiel; é a única petista em um bloco de esquerda que conta com três mandatos do Psol.

Na conversa que tivemos na última quinta-feira, falamos sobre a titularidade na Câmara, a relação com o prefeito Gean e a base governista, a cara da esquerda e do Pt agora e no futuro, sobre Lula e os velhos homens brancos que lideram os processos políticos. E demos algumas risadas, porque a vida é melhor assim.

Leia a entrevista:

Foram três experiências como suplente antes de ser titular como vereadora em Florianópolis. Além do tempo, o que está diferente?

Primeiro, estar titular na condição que fomos eleitos, e eu sempre gosto de colocar no plural, porque de fato existe um um projeto que envolve a minha candidatura desde 2016, um coletivo, uma identidade, de pautas que a gente defende. Quando eu estive suplente naquelas três oportunidades, um mês por ano, a gente chegou sempre de forma muito afoita, como se fosse a única experiência que a gente pudesse ter. 

Uma contagem regressiva também? 

É. “É um mês, a gente tem que apresentar o nosso projeto, resumir em um mês, fazer acontecer e tudo mais”. Acho que a gente teve sucesso nessas três experiências, tanto de ser identificada na cidade com esse projeto, quanto de apresentar coisas. Estar titular nos traz dois desafios. O primeiro, tendo como comparação esses três meses, é manter essa expectativa também da população em relação às nossas pautas. Como se diz, não deixar a peteca cair. Por outro lado, a gente também pode planejar melhor as coisas. Ter mais parcimônia naquilo que a gente vai apresentar, criar relações políticas mais sólidas dentro da Casa, inclusive com os demais partidos, não só de esquerda. E tem uma questão que eu acho que talvez venha dessa ansiedade dos outros momentos, que é de em alguns momentos, em algumas situações, existir um sentimento de impotência. Você se depara com os limites do Legislativo muito mais na sua cara. Coisas que não andam, a realidade da relação com o Executivo, com a base (governista), de travar as pautas e tudo mais. 

A Câmara tem uma base de apoio ao prefeito Gean Loureiro (Democratas) que é muito forte, com pelo menos 17 dos 23 vereadores. Tem também um bloco de esquerda muito identificável, com seu mandato e os três vereadores do Psol. Com quem conversas além da esquerda?

Nós temos tido uma política de diálogo, de deixar a porta do nosso gabinete aberta para qualquer um dos 23 vereadores e vereadoras e de buscar fazer construções possíveis. Eu acabei de vir do gabinete do (João) Bericó (Psl) e da Maryanne Mattos (Pl). Eu tento conversar com todos, nem todos conversam. Nem todos estão abertos, inclusive, para que a gente possa encaminhar conjuntamente pautas de fato. Mas a gente tem conseguido atuar mais conjuntamente, além do Pt e do Psol, com o Pl em assuntos principalmente de oposição à gestão do Gean. 

A oposição é essa: os quatro da esquerda e os dois do Pl?

Exatamente. 

E como é a relação com o prefeito Gean? 

Não existe, né? Não existe. Não por indisposição da nossa parte, porque como eu falei anteriormente a nossa porta está aberta para o diálogo.

Essa busca do diálogo a gente também tenta com o Executivo. Alguns setores até nos ouvem, nos recebem. Por exemplo, a gente tem tido uma relação diplomática com a cultura, com o setor cultural, com o Fábio Botelho, que está à frente da Fundação Franklin Cascaes. Eu estou à frente da frente parlamentar em defesa das políticas culturais. A gente consegue ter um trânsito ali sempre que busca tirar alguma dúvida ou solicitar determinadas demandas. Com a Secretaria de Saúde, a gente também tem tido espaço aberto, já dialoguei com o próprio ex-vereador Miltinho Barcellos (secretário-executivo no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social) nas questões de economia e dos setores afetados pela pandemia. Mas com o Gean, diretamente, tem uma dificuldade muito grande. E existe uma base (governista) muito sólida na Câmara que em termos numéricos o Gean tem maioria absoluta para tudo que ele quiser. Então, existe uma chacota, muitas vezes, em relação a pautas e movimentações que a oposição faz. Dizem “ah, isso é coisa da oposição, estão viajando, isso não vai passar”. Porque eles sabem que se o Gean não quiser, não passa. 

Qual sua avaliação da gestão do prefeito Gean? 

O Gean tem alguns posicionamentos que a gente diz que na propaganda é tudo bom, mas na realidade a coisa é bem diferente. Isso vale para relação com os servidores públicos, isso vale para a relação com o próprio Legislativo. Existe uma posição de dominar o Legislativo muito forte. No enfrentamento da pandemia, o Gean teve uma posição que pode até ter sido louvável no início, exemplo para muitas cidades, mas que no decorrer dos meses se mostrou insuficiente. Embora ele tente se afastar do bolsonarismo, ele tenta se colocar agora, por exemplo, na vacinação, como a cidade que mais vacina, etc. Mas não cobra, de fato, posições do governo estadual e do governo federal que poderiam alavancar ainda mais essa vacinação.

A relação com o Legislativo é ridícula. Aconteceram situações aqui na aprovação do orçamento, na discussão do auxílio emergencial, que mostram o quanto que existe uma tentativa quase que ditatorial de comandar o Legislativo.

Isso não é bom pra democracia, porque tira a autonomia do poder. É mais ou menos esse o modelo dele aqui para dentro. 

Gean foi reeleito em primeiro turno ano passado, em uma eleição em que os partidos de esquerda conseguiram se juntar em uma candidatura só, algo que não acontecia há muito tempo na cidade. Elson Pereira (Psol) ficou em segundo lugar, um resultado bom para o histórico das últimas eleições, mas agridoce por não ter chegado ao segundo turno. Onde houve acerto e onde houve falha na frente de esquerda de Florianópolis?

O acerto foi a própria unidade. Há algum tempo, desde a reeleição do (Sérgio) Grando em 1996 (a vereadora se refere à eleição de 1996, quando o então prefeito Sérgio Grando, do Pps, apoiou Afranio Boppré, na época do Pt – não havia ainda a reeleição e ambos os partidos integravam a Frente Popular) eu acho que a esquerda não tinha uma experiência de se unir e de se colocar conjuntamente para disputar. A gente estava precisando disso de fato.

Agora, eu acho que a esquerda, pensando mais do meu partido, talvez, precisa ousar mais. A gente tem que se apresentar como esquerda de fato. Ousar no sentido de não tentar se aproximar do discurso fácil do ganhar a eleição, mas se apresentar como um antagonista ao projeto que a gente se opõe. 

A candidatura de Elson Pereira foi pouco à esquerda no discurso?

Eu não sei se ela foi pouco à esquerda, mas a gente tem que ajustar a narrativa e a linguagem da esquerda para comunicar com a maioria da população. E aí não é um problema do Elson, é um problema da esquerda. Nós precisamos voltar a nos comunicarmos com aquilo que toca a vida das pessoas para quem a gente busca governar e se colocar como uma alternativa de representação. 

Essa sua fala me remete a algo que eu já queria perguntar. Há uma tentativa de formar também uma frente de esquerda em nível estadual. Eu publiquei a foto de um encontro de lideranças e dirigentes. Décio Lima (Pt), Manoel Dias (Pdt), Afrânio Boppré (Psol), Douglas Mattos (Pcdob), entre outros. Todos homens, mais velhos, brancos. A esquerda é aquela foto? Essa é a cara da esquerda em Santa Catarina?

(pensa bastante antes de responder) Olha, eu não vou dizer que eles não representam a esquerda, que eles não falem com um discurso de esquerda. Mas, sem dúvida nenhuma, a foto não representa mais a própria pluralidade que a esquerda já abarca. Uma pluralidade que trouxe para 2020, inclusive, embora a gente esteja no contexto bolsonarista, de muito recrudescimento, muito ódio, fundamentalismo e tudo mais, eleições muito significativas de outros perfis no país todo. É a tentativa de colorir aquela foto, né? A esquerda elegeu no país todo muitas mulheres, muita gente negra, muita juventude, muitos LGBTs, muitas mulheres trans. Coisa que nunca tinha acontecido. Quando fala sobre essa questão da pluralização dos corpos, da narrativa do discurso, a gente também está falando sobre isso.

Muitas vezes os mandatos que ganharam uma eleição em 2020, alguns já em 2018, correm por fora daquele almoço. Brindam em outros encontros. Quando eu falo da linguagem, também é da linguagem do fazer política e da construção de pontes. Não é só fazer um almoço de grandes lideranças, mas é construir outros métodos de fazer política.

Como gostaria que fosse uma frente de esquerda em nível estadual para 2022?

(mais uma vez, pensa bastante antes de falar, sorri antes de começar a responder) A primeira coisa que eu acho que a gente tem que colocar é que as eleições de 2022 no Estado, no país todo, vão estar pautadas entre o grupo que defende a democracia e o que defende o bolsonarismo. Eu acho que a gente vai ter que se pautar por isso. E a defesa da democracia não passa mais só por um debate legalista, ela passa pela defesa de vários valores. Tem que ser uma frente que expresse essa pluralidade, com mais mulheres disputando as eleições e com chances reais e incentivos partidários para se elegerem. Tem que ser uma chapa plural, tem que ser uma chapa que comunique com o campo, com a cidade, com os jovens, com os mais velhos, com brancos e negros, homens e mulheres, indígenas. É mais ou menos a mesma lógica do que eu falei sobre os possíveis erros da frente em Florianópolis. Precisa comunicar muito mais. E encantar. 

Tens candidato ou candidata ao governo?

Não. O Décio (Lima) é pré-candidato, mas não está afirmado ainda. 

Sim, mas pergunto se tens um candidato do coração (risos)

(ela também ri) Do coração vai ser o nome… não tenho, de coração não tenho. No partido nós temos o Décio colocado. A gente tem um centralismo democrático interessante, não que eu concorde a todo tempo. A gente disputa também o partido, a gente critica o partido, a gente se posiciona em relação a muitas coisas. Mas ainda não tem esse nome ideal colocado, embora eu acho que o Décio tem condições partidárias para se colocar como vem se colocando. Mas, de coração, assim, não (risos). 

Pretendes ser candidata a algum cargo em 2022? 

Estou à disposição do Partido dos Trabalhadores, como sempre estive. Sou filiada há 16 anos e tenho dito que eu não me filiei ao Pt para ser candidata. Eu fui candidata e sou vereadora, porque existe uma construção, inclusive, do meu sujeito político por meio do Pt.

Estou à disposição do partido e acredito que a região, a grande Florianópolis, não pode passar mais uma eleição sem eleger nem deputado estadual, nem deputado federal. Nós temos um potencial eleitoral enorme e a esquerda há muito tempo não elege nenhuma representação, seja para Assembleia Legislativa, seja para o Congresso. 

Desde a Onda Lula, em 2002.

Exatamente. Desde 2002. Vai fazer 20 anos.

O Afrânio ainda estava no Pt (foi eleito deputado estadual em 2002 e migraria para o Psol, recém-fundado, em 2005). 

Afrânio e Mauro Passos (deputado federal eleito em 2002, hoje fora da política). Exatamente, então são duas décadas.

Duas figuras que deixaram o Pt, por sinal. O Pt de Florianópolis parece que vive uma eterna reconstrução. Tua vitória talvez seja um símbolo de uma renovação dentro do Pt da Capital, que há várias eleições faz uma cadeira na Câmara e não vai além dessa cadeira. Como fazer para que o Pt de Florianópolis seja mais do que uma cadeira na Câmara?

Se abrir para esses corpos, ideias e linguagens novas.

O Psol soube fazer isso melhor que o Pt e ocupou esse espaço da esquerda de Florianópolis?

Soube e não só em Florianópolis, do ponto de vista dessas novas linguagens e dessas novas representações. Embora em 2020 o Partido dos Trabalhadores tenha sido o partido que mais elegeu mulheres, que mais elegeu LGBTs, que mais elegeu gente negra.

Talvez o Psol saiba mostrar melhor que fez isso.

Exatamente. Talvez essas bandeiras estejam mais fora do armário. Mas nós ganhamos a eleição dispostos a tirar esses temas todos do armário. Mas só para completar, eu acho que existe uma questão novamente valorizando a região da Grande Florianópolis, a Capital do Estado, que tem todo um debate entre a representação no litoral e a representação no Oeste. Eu acho que o PT tem um potencial e deve investir nisso, de reencantar esse eleitor litorâneo e da Capital.

Acha que a volta do ex-presidente Lula para o cenário, como jogador, como candidato, vai dar uma impulsionada nas candidaturas petistas ano que vem, mesmo que Santa Catarina seja, talvez, o Estado mais bolsonarista do país? 

Tenho certeza absoluta. O xadrez muda todo. Temos a tarefa de eleger o Lula e nós temos a tarefa de nos colocarmos à disposição, seja nosso mandato ou as lideranças que têm o potencial de serem candidatos, para também construir palanque para o Lula em Santa Catarina. 

A construção desses palanques deve incluir o tipo de pragmatismo que o Pt teve no poder quando aceitou tanto Mdb, Progressistas, esse tipo de apoio mais ao centro, mais à centro-direita, ou deve ser um palanque de centro-esquerda no máximo?

Tem que ser um palanque que derrote o bolsonarismo. A prioridade tem que ser essa: a defesa da democracia e a derrota do bolsonarismo. Porque a gente só vai poder almejar qualquer outra possibilidade mais à esquerda, se for o caso, para leituras mais radicalizadas, se a gente derrotar o Bolsonaro. Se não, não tem espaço para isso. 

Não te incomoda como mulher, lésbica, jovem, que o Pt não tenha conseguido ter outra liderança além do Lula nesses trinta anos, que ainda dependa tanto do velho homem branco Lula para se viabilizar, para se fortalecer?

Mas qual partido, de centro ou de esquerda ou de direita, apresenta um nome que não seja esse perfil? Com força, com a mesma capilaridade, com o mesmo protagonismo que o Lula. Acho que não é um problema do Pt, é um problema do sistema partidário eleitoral que nós temos. 

É que os outros partidos não têm nem um Lula. (risos)

Pois é, exatamente. (ri também)

Mas em algum momento vocês não vão ter o Lula também. 

Por isso que a gente precisa estar à disposição para disputar essas narrativas.

Eu vejo as manifestações de esquerda, especialmente, aqui em Florianópolis sempre tomadas por jovens. Talvez você seja um exemplo disso que vou perguntar. Como fazer esses jovens virarem ativos eleitorais, entrarem no jogo?

Mostrando que esse espaço aqui também é um espaço que pode ser ocupado por nós. Eu me considero jovem, embora para o IBGE acho que eu já não seja mais, porque acho que é até os 29 (risos). Mas mostrar que é possível. Eu sou cientista política também, então tento trazer algumas coisas que a gente aprende na teoria pra ver se dá certo. Quando a gente fez o planejamento do mandato no início do ano, eu dizia para o pessoal que a gente precisa resgatar a credibilidade na política. E como que a gente pode resgatar a credibilidade na política? Uma primeira coisa é que nós conseguimos, ainda que à margem, um mandato petista de uma mulher, lésbica, feminista, antiproibicionista, jovem, que pode fazer diferente. Fazer diferente, mas valorizando esse espaço. Até mesmo essa questão eleitoral. Eu falo que estou à disposição do partido, acho importante, mas se candidatar a cada dois anos, o  eleitor ou a própria juventude não entendem necessariamente a importância disso.

A gente precisa criar um lastro enquanto mandato, criar um lastro enquanto trabalho, para que a juventude, a própria população que está desacreditada da política, veja seriedade nisso. Retome a credibilidade na política e como consequência, veja que nós somos um mandato petista e retome a credibilidade petista. 

E, ao mesmo tempo, o teu próprio mandato é fruto de uma paciência, de quem disputou duas eleições antes (vereadora em 2016 e deputada estadual em 2018). 

Exatamente, porque é uma construção. Figuras que concorrem pela primeira vez e se elegem podem ter um lastro, mas podem ser uma onda também. A gente precisa fazer essa construção, principalmente se a gente é mulher. Acho que… acho, não, tenho certeza de que não é pouca coisa ser a primeira mulher eleita pelo Pt na Capital. Não é pouca coisa na minha primeira eleição, em 2016, ter sido a primeira mulher a fazer mais de mil votos no Pt da Capital. É importante entender essa responsabilidade.

Enfrentou machismo dentro do Pt?

Dentro, fora, do lado, em todos os lugares (risos). Sem dúvida. E ainda enfrento. Em todos os lugares também, aqui dentro. Nem o PT, nem a Câmara, nem o Senado, nem qualquer partido, de direita ou de esquerda, está imune de ser uma instituição que se constrói e se reproduz em uma sociedade que é patriarcal, racista, LGBTfóbica. As pessoas que constroem essas instituições não estão fora da sociedade, não é uma bolha. É inevitável, ainda que doloroso, que essas reproduções aconteçam. E a gente também tem o trabalho e a tarefa de ir buscando romper com isso aos poucos.


Sobre as fotos:

A vereadora Carla Ayres (Pt) me recebeu em seu gabinete na Câmara de Florianópolis na última quinta-feira, dia 8 de julho. Fotos: Valmor Neto.

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