É curioso que a língua portuguesa denomine como “fato” o coletivo de bodes. Em política, nada mais longe de um fato que um coletivo de bodes na sala. Era mais ou menos isso o esdrúxulo texto aprovado na comissão especial da reforma eleitoral na Câmara dos Deputados, sob a relatoria da deputada federal Renata Abreu (Podemos de São Paulo). Ali, os deputados misturaram assuntos tão diversos e polêmicos como a adoção do chamado distritão e a criação de uma novo modelo de eleição presidencial – sem segundo turno, o eleitor votaria em cinco nomes e seria eleito o que atingisse a maioria absoluta. Tudo bode na sala. O plenário da Câmara votou ontem o texto e os destaques que foram tirando o “fato” do caminho. E ficou aquilo que era o desejo da maioria dos deputados federais esse tempo todo: a volta das coligações nas eleições para deputado federal, estadual e vereadores, extinta por uma reforma eleitoral em 2015.
A votação do destaque que tirava esse item do texto foi derrotada por 333 a 149. Havia um acordo para que a volta da coligação na eleição proporcional fosse a compensação para boa parte dos deputados federais desistirem do distritão – o modelo em que os candidatos mais votados se elegem, sem levar em consideração os votos alcançados pelos partidos. Assim, o distritão foi fulminado por 423 votos a 35, como se nunca tivesse havido uma pressão imensa de bastidores por sua adoção. Eleger os mais votados parece óbvio, mas o sistema majoritário na eleição parlamentar acaba privilegiando quem já tem estrutura para caçar votos em toda a região em que concorre. Isso, somado ao fundo eleitoral que privilegia quem já tem mandato é um doping claro para a reeleição de quem já ocupa as cadeiras. Felizmente, saiu da sala junto a outros bodes menos nocivos.
A volta da coligação é outro doping. A proibição aprovada em 2015 ainda nem foi aplicada em eleições de deputados federais e estaduais, apenas nas de vereador do ano passado. Foi uma das poucas medidas concretas aprovadas pelo parlamento no sentido de reduzir a proliferação de partidos políticos. Com a coligação, partidos médios e pequenos podem pegar carona na chapa dos partidos maiores, indicando seus poucos nomes viáveis para a disputa e driblando a necessidade de alcançar o quociente eleitoral. Sem a coligação, partido que não tem time para fazer a chapa própria não alcança os votos necessários para eleger deputados – e, com o tempo, acaba morrendo.
O retorno das coligações pairou como ameaça na Câmara dos Deputados desde que foi aprovada sua extinção. Em passagem por Florianópolis em 2019, o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia (sem partido, Rio de Janeiro) relatou as pressões das bancadas de pequenas e médias siglas para que o tema fosse colocado em votação e disse que provavelmente seria aprovado se o fizesse. Maia tinha uma posição pessoal contra o retorno da coligações e blindou o tema. O atual presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas de Alagoas) parece ter sido um dos incentivadores do retorno do tema – misturado a um fato de bodes.
A volta das coligações, no entanto, depende não apenas da confirmação em segunda votação pelo deputados federais, previsto para esta quinta-feira, mas principalmente de que o Senado analise e aprove a proposta até outubro. Sem isso, não vale nas eleições do ano que vem. Já havia sinalizações de que os senadores não topariam o distritão e o mesmo deve acontecer com as coligações proporcionais. O Senado apostou em uma reforma eleitoral mais branda para 2022 e a aprovou antes do recesso. Ela modifica a regra da disputa das sobras de vaga na eleição proporcional e cria um piso mínimo de mulheres eleitas na Câmara dos Deputados, assembleia legislativas e câmaras de vereadores – 18% em 2022. Em troca, os partidos poderão indicar menos candidatos para composição das chapas e não terão a obrigação de completar os 30% de mulheres, bastando manter a vaga vazia.
Haverá um duelo de teses agora, porque o remendo dos senadores também só valerá se aprovado pelos deputados até outubro. É o que chamamos de sistema bicameral. É o que impede bodes de se tornarem fatos, no sentido mais usual da palavra.
Veja como votaram os catarinenses sobre a volta das coligações:
Votos a favor
Carlos Chiodini (Mdb)
Darci de Matos (Psd)
Fabio Schiochet (Psd)
Geovânia de Sá (Psdb)
Hélio Costa (Republicanos)
Pedro Uczai (Pt)
Votos contrários
Angela Amin (Progressistas)
Carmen Zanotto (Cidadania)
Caroline de Toni (Psl)
Celso Maldaner (Mdb)
Coronel Armando (Psl)
Daniel Freitas (Psl)
Gilson Marques (Novo)
Ricardo Guidi (Psd)
Rodrigo Coelho (Psb)
Rogério Peninha (Mdb)
Sobre a foto em destaque:
Arthur Lira (Progressistas de Alagoas) comanda a sessão da Câmara dos Deputados que aprovou a volta das coligações nas eleições proporcionais. Ele não blindou o tema como o ex-presidente Rodrigo Maia (sem partido, Rio de Janeiro). Foto: Cleia Viana, Câmara dos Deputados.