A sorte está lançada, disse Júlio Cesar pouco antes de desafiar a proibição do Senado de atravessar com tropas o Rio Rubicão. Atravessou, desafiou e acabou tomando o poder em Roma. Atravessar o Rubicão passou a significar aquele momento em que não é mais possível retroceder, em que não há mais espaço para conciliações, a hora de arcar com as consequências dos atos – e descobrir, afinal, de que lado está a sorte, ou “o dado”, em uma tradução mais literal do “alea jacta est” que teria sido dito por Cesar na hora da decisão.

As narrativas estão a postos neste momento nas redes sociais para tentar convencer milhares de pessoas sobre quem atravessou primeiro o metafórico Rubicão deste Brasil à beira de uma crise institucional – eu ia dizer “sem precedentes”, mas eles existem, infelizmente. O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) é o candidato mais óbvio. Mobilizou seus leais e engajados militantes por todo o país, mas estrategicamente concentrando esforços nas frentes de Brasília, na Praça dos Três Poderes, e em São Paulo, na Avenida Paulista. Produziu imagens impressionantes de apoio popular, mesmo que aquém das expectativas que a mobilização de semanas gerou. Diante dessas imagens, disse o que não pode ser desdito: mandou o Supremo Tribunal Federal (Stf) “enquadrar” o ministro Alexandre de Moraes – rival da vez pela condução do inquérito que tem resultado na prisão de apoiadores do presidente por apoio a atos antidemocráticos ou ameaças ao magistrado e/ou à corte suprema.

Fortalecido pelo apoio de sua massa de apoiadores, Bolsonaro transformou a Praça dos Três Poderes e a Avenida Paulista em extensões gigantes do cercadinho em que costuma lançar bravatas contra seus inimigos da vez para turmas de apoiadores. Agora, eram milhares nesses verdadeiros cercadões. Diante desses milhares, o presidente disse que não vai acatar decisões de Alexandre de Moraes e que pode tomar medidas – que não nomina, porque deve saber que são inomináveis – contra o Supremo caso não seja expurgado ou silenciado seu integrante incômodo. Voltou a dizer, também, que não aceita o sistema eleitoral vigente desde 1996, com as urnas eletrônicas – tema já derrotado no Congresso Nacional.

Bolsonaro e seus aliados, no entanto, afirmam que quem atravessou o Rubicão brasileiro foi Alexandre de Moraes, a quem acusam de fazer perseguição política a integrantes do campo conservador, como o deputado federal Daniel Silveira e os ex-deputados federais Roberto Jefferson e Sérgio Reis. Nas falas do presidente, a reação dos militantes bolsonaristas é a luta pela liberdade de expressão, pelo direito de criticar o Stf, o sistema eleitoral, a urna eletrônica, o ICMS, as medidas dos governadores contra a pandemia, defender golpe militar e qualquer outro tema da excêntrica lista de prioridades do governo Bolsonaro e seus aliados enquanto o Brasil real se vê enredado pelo desemprego, a inflação e a covid-19.

Bolsonaro mostrou força porque mesmo com as pesquisas de diversos institutos mostrando que vem perdendo popularidade e potencial de reeleição, ele comprovou que hoje é o único líder político brasileiro capaz de mobilizar multidões em seu apoio. O leitor lulista pode se incomodar com a frase, mas não tem neste momento condições de negá-la. Não são cenários incompatíveis a liderança que Lula apresenta nas pesquisas e a mobilização mais engajada dos bolsonaristas. Mostram apego e lealdade da base do presidente, mas também apontam para o afastamento de um eleitor mais moderado que aderiu a sua candidatura em 2018 pelas circunstâncias de momento. É com esse eleitor que quer falar todo mundo que tenta construir uma alternativa a Lula e Bolsonaro – e até o próprio petista.

Na etapa de Brasília dos atos de 7 de setembro, Bolsonaro falou em convocar o quase nunca utilizado Conselho da República, com integrantes dos Poderes Executivo e Legislativo e nomes indicados por eles. Trata-se de uma instância consultiva para temas como estado de sítio e intervenção federal nos Estados. É o tipo de atitude em que o aparente diálogo é mais uma forma de pressão do que de conciliação. Em sua luta contra o Supremo, ele traz o Congresso para a questão. No Senado, o presidente Rodrigo Pacheco (Democratas de Minas Gerais) disse que não foi chamado, criticou as falas do presidente e suspendeu sessões e reuniões de comissões desta semana. Na Câmara, o aliado Arthur Lira (Progressistas de Alagoas) calou-se sobre as falas do presidente. Cabe a ele analisar pedidos de impeachment que devem surgir nos próximos dias, além dos 126 atualmente engavetados.

No parlamento, é visível que começa a se mexer a máquina de derrubar presidentes – já a vimos em ação contra Fernando Collor em 1992 e contra Dilma Rousseff em 2016. Em nota, o Mdb disse que “é lamentável o presidente da República usar o Dia da Independência para afrontar os outros Poderes” e que a Constituição “tem seus remédios em defesa da democracia”. Democratas e Psl, em conversas para fusão, lançaram nota conjunta repudiando as falas do presidente. Candidato a presidente pelo Podemos em 2018, o senador paranaense Álvaro Dias chamou o discurso de Bolsonaro de “pregação da anarquia”. O Psdb marcou reunião para esta quarta-feira para discutir apoio ao impeachment, com apoio dos pré-candidatos presidenciais João Dória e Eduardo Leite. O presidente do Psd, Gilberto Kassab – sempre um dos primeiros a prever para onde vai o vento da política – disse que “começam a surgir indicativos importantes, que podem justificar o impeachment”. Essa turma estava toda junta em 2016, você deve lembrar. São os fazedores de impeachment.

A sorte está lançada, a sorte de todos nós. O Brasil vive uma espécie de Rubicão móvel, diversas vezes atravessável, pelas mais diversas figuras políticas. Alexandre de Moraes atravessou o seu quando enfrentou a militância bolsonarista, Bolsonaro fez isso neste 7 de setembro. Fica a expectativa sobre se o Congresso vai atravessar o Rubicão do impeachment e como isso afetará a briga de torcidas organizadas que virou a política brasileira. Em Santa Catarina, um dos maiores redutos de popularidade do presidente, as lideranças políticas olham para o cenário à espera de como essa crise vai chegar a seus rincões e cálculos eleitorais. Com exceção dos eleitos da onda Bolsonaro de 2018 e dos que esperam carona na garupa da moto em 2022, os demais calaram ou mantiveram-se cautelosos. Até nisso a política catarinense está longe do centro do poder.


Sobre a foto em destaque:

Bolsonaro mirou o Supremo, mas próxima batalha deve ser travada no Congresso Nacional. Foto: Marcos Corrêa, Presidência da República. 

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