O maior problema das narrativas políticas é que as pessoas se afeiçoam a elas. Por mais que a realidade em algum momento se imponha – e antes disso dê todas as pistas de que o factóide da vez não tem pé e nem cabeça – muita gente continuará acreditando piamente naquela versão dos fatos. Peguemos o exemplo da última narrativa: a que colocou a Seleção Brasileira no meio da disputa entre direita e esquerda.
O governo de Jair Bolsonaro (sem partido) deu aval a uma improvisada e inoportuna Copa América no Brasil às vésperas do início do torneio do qual Colômbia e Argentina já haviam desistido. Uma decisão temerária em meio à pandemia, mas apenas mais uma entre tantas. A dimensão que ganhou a polêmica só se explica pela necessidade de produzir óleo para manter funcionando a máquina de conflitos chamada redes sociais.
A polêmica atingiu seu ápice quando alguns jogadores da Seleção manifestaram incômodo em abrir mão de seus férias para jogar uma Copa América que perdeu o brilho há muitas edições, gera apenas desgaste em caso de derrota e foi banalizada por acordos comerciais – a última foi disputada há apenas dois anos, aquela que Neymar não jogou e o time fluiu melhor sem ele, lembra? O desconforto foi externado pelo treinador Tite e endossado pelo capitão Casemiro logo após a vitória apática sobre o Equador na última sexta-feira.
Em nenhum momento se falou na pandemia como justificativa para a insatisfação, mas a guerra de narrativas das redes sociais logo gerou após dois cenários hiperbólicos. Para os bolsonaristas, um bando de jogadores sem identificação patriótica, liderados por um treinador petista e tabelando com a emissora de televisão que perdeu os direitos de transmissão do evento. Para a esquerda, um motim de jogadores preocupados com o avanço da pandemia no Brasil, tendo à frente um treinador que não se dobra aos interesses do presidente da República e da própria CBF.
O auge da guerra de narrativas foi a informação de que o presidente da CBF, Rogério Caboclo, teria prometido a Bolsonaro demitir Tite e colocar em seu lugar Renato Gaúcho, declaradamente bolsonarista. Quem caiu foi Caboclo, fulminado por denúncias de assédio sexual, mais um presidente da entidade que sai pela porta dos fundos. E que não fará falta.
A guerra de narrativas começou a esvaziar nesta segunda, com a informação de que os jogadores teriam decidido jogar a Copa América. Apesar da frustração dos esquerdistas que já imaginavam uma greve futebolística, punhos cerrados, etc, ficou uma gosto de empate no embate de versões. Bolsonaro terá uma Copa América para chamar de sua, a inusitada aliança esquerda/Globo derrubou Caboclo. Tite mantém-se como treinador de sua burocrática seleção, Renato Gaúcho continua aproveitando férias no Rio de Janeiro. Quem embarcou com veemência na briga de narrativas, faz de conta que não aconteceu nada. Ficam os apaixonados das teses, afeiçoados por essa Batalha Canarinho que não houve. Até que venha a próxima narrativa polarizadora. A seleção deu uns dias de descanso para a polêmica envolvendo a atriz Juliana Paes e suas confusas posições políticas. Pensando bem, isso foi um alívio. Que venha a próxima.
Sobre a foto em destaque:
Neymar seria um dos jogadores da Seleção Brasileira que não queria disputar a Copa América. No fim, o que ficou foi uma briga de narrativas que não paravam em pé. Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil.